Quatorze anos, três meses, vinte e três dias
Morreu o meu Palito e não sinto a menor gratidão.
Morreu o meu Palito aos quatorze anos, três meses e vinte e três dias, pesando meros dez quilos e meio e com um coração que lhe grilou toda a caixa torácica. Era um whippet macho, de pelagem branca e dourada, filho da Paris e do Guga e com ancestrais de nomes curiosos, como uma cadela chamada Crème Ceci Bonne e outra batizada de Crazy Sexy Cool. Seu dote custou o exato valor do meu salário, e foi parcelado em três cheques pré-datados conhecidos na literatura como Cheques do Palito.
Era um cachorro meigo e educado como todos os whippets, mas fisicamente corajoso e dado ao mundo de um jeito incomum à raça. Não era aquele típico galgo tímido e medroso, acuado num canto, se escondendo atrás da dona. Era o meu companheiro de todas as roubadas, e eu só saía de casa sem ele quando não tinha jeito. Se houvesse um jeito ruim, errado, inconveniente, esse seria o nosso jeitinho.
Tudo nele era gostoso. O pelo, o cheiro, o hálito, a voz, os gestos, as pétalas de orelhinhas. Nunca sentava e se recusava peremptoriamente a deitar no duro. Então lá íamos nós, com um colchonete do Snoopy enrolado debaixo do braço, amarrado na mochila ou em volta da cintura. Mas mesmo o colchonete não atendia aos seus padrões de conforto, e ele fechava a cara em jantares demorados, cafés que se prolongavam. Às vezes eu dava o braço a torcer e levava uma cama imensa que mal cabia debaixo dessas mesas estreitas de restaurante.
Detestava esperar na frente do Extra, soltava um de seus raros latidos quando a moça da farmácia demorava a conferir minhas receitas em um dia frio, ou quando um babaca qualquer empacava no caixa. Gostava de gatos, porém só foi correspondido pelo José, e os dois tiravam longas sonecas ao sol no quintal da minha sogra, debaixo de um brinco-de-princesa de dimensões monumentais.
Era cheio de tiques engraçados e adoráveis e ajustava a velocidade conforme o gosto do freguês. Estava sempre disposto a andar uma maratona, a jogar bola até dizer chega & a tirar um cochilo. Era curioso e bisbilhoteiro, inteligente e afetuoso, obediente e digno. Seguia os comandos como quem acata a sugestão de um estagiário promissor. Era territorialista com os lugares de sentar e de fato chegou a ser expulso do transporte escolar por disputar o banco da frente com um golden retriever conhecido como Duque. Até perto do fim, ainda vencia o Bingo na corrida de tiro.
Morreu o meu Palito e não sinto a menor gratidão, não acho que ele virou estrelinha, nem que agora esteja com o Thiago. A morte é a desgraça inteira, é uma ideia absurda, um vazio constrangedor no qual tentamos jogar todo tipo de ilusão para enfeitar o palhaço. Ela não dá sentido às coisas, não traz sabedoria, não é uma forma de descanso, um reencontro, uma transformação, não abre um ciclo novo. Outras coisas podem vir a despeito da morte, não por causa dela, e a verdade é que tendem a vir de pé mole. É reconstruir a casa para a próxima enchente.
Se eu fosse obrigada a citar o lado bom da morte, diria que seu único favor é nos convencer a morrer. Ela esvazia a vida pétala por pétala até chegarmos ao ponto em que tanto faz, é essa merreca que você quer levar?
Oin eu era super fã do Palito. Sinto muito mesmo 🥲
q merda, q merda, a morte é só isso aí mesmo