Annie Ernaux: uma mulher para amar
A nova laureada do Prêmio Nobel é uma boa notícia em tempos de carestia
Hoje a Annie Ernaux foi laureada com o Nobel de Literatura de 2022 e esta é uma excelente notícia por vários motivos. Vou resumir o assunto em cinco tópicos:
❶ O primeiro motivo de festa é que os livros dela são muito maravilhosos e muito acessíveis. Quase todos são bem curtinhos, alguns chegam a ter menos de 70 páginas.
Lendo na velocidade normal, um adulto mata 70 páginas em menos de 2h. Se quiser, você começa e termina um livro dela no mesmo dia. E, se quiser mais ainda, dá pra ler todos os 20 livros dela até o fim deste ano.
Quem esteve na última edição do meu curso de literatura contemporânea — o Lendo o Nosso Tempo — largou na frente, porque a gente leu O Lugar em março de 2022, cof cof.
Aqui no Brasil, os livros da Ernaux estão sendo editados pela Fósforo, que já lançou O Lugar, Os Anos, O Acontecimento e A Vergonha, e agora está com O Jovem na pré-venda. Antes disso, a Três Estrelas havia publicado Os Anos em 2019 e, na década de 1990, a Objetiva lançou Paixão Simples e Os Anos. Como deu pra notar, Os Anos é mesmo a obra mais famosa e reconhecida da autora, mas não é necessário começar por ela e não existe uma ordem certa de leitura.
Também saíram dois filmes baseados na obra dela, e ambos estão disponíveis nos streamings brasileiros. O Acontecimento está na HBO Max e Pura Paixão está na Apple TV. Ainda não vi nenhum dos dois, então farei a Glória Pires e não opinarei, rs.
❷ A premiação da Ernaux é um tapa na cara da crítica francesa, que nunca engoliu o fato de ela ter uma escrita sóbria e clara, sem muitas firulas e paranauês e sem o psicologismo noir estilo mulher profunda e misteriosa que se espera das escritoras francesas do sexo feminino. Aquela vibe anêmica de gola rolê fumando na janela em um dia chuvoso. E Ernaux bem que tem o physique du rôle, mas graças a Deus não incorporou a personagem.
Quando estava preparando minha aula sobre O Lugar, li um livro interessante sobre ela que dizia que não havia nenhum artigo a respeito da obra dela publicado em nenhum periódico literário francês. Pensa que o texto abaixo foi escrito no ano 2000, quando ela já tinha 26 anos de carreira. Confesso que isso me deixou bem puta da minha cara.
❸ Um dos grandes temas da Ernaux é o sentimento de traição e inadequação por ter ascendido socialmente. Ela se considera uma pessoa “transclassial”, no sentido de ter passado de filha de operários numa super roça da Normandia a professora e escritora em Paris.
Eu acho que esse sentimento é compartilhado por toda uma geração de brasileiros que foram os primeiros de suas famílias a entrarem na universidade, e que convivem com o orgulho, mas também com a desconexão e com um eventual rancor que isso pode gerar entre os familiares.
Essa migração de classe não é beeem uma migração financeira, e sim para outro tipo de sociabilidade. Espero que hoje em dia a Ernaux esteja muito bem de vida, até porque os livros dela são best-sellers tanto na França quanto no mundo anglófono. No entanto, a transição se deu assim que ela se tornou professora de francês na escola pública. Nessa época, não devia ganhar tão melhor do que os pais — que também subiram na vida operária e passaram a ser donos de um café. A diferença cultural, no entanto, já foi o suficiente para afastá-los.
A Ernaux passou a vida inteira dando aula em escola. Antes de se aposentar, era professora do Centro Nacional de Ensino a Distância, um instituto mantido pelo governo francês e que existe até hoje. Primeiro eles ofereciam curso por correspondência. Agora, pela internet.
❹ Ela é uma feministaça da melhor estirpe porque nunca perde o horizonte de classe e o contexto histórico de vista. Além disso, não tem uma visão idílica sobre si mesma ou sobre essa entidade mítica chamada As Mulheres. Ernaux fala de seu aborto clandestino, de seu caso extraconjugal, dos casamentos e divórcios que teve. Fala bastante de sexo e de como essa transição de classe chega até a cama. Tudo em um tom de sincera investigação e curiosidade.
Esta é uma escritora interessada na experiência do francês comum, e que enxerga sua escrita como uma forma de abordar as reverberações do coletivo na vida individual. Os textos são todos autobiográficos, mas não é uma coisa alecrim dourado de “oh, como sou diferente de tudo e todos”. O foco é na história coletiva do povo francês — mais especificamente da mulher francesa comum, vinda das classes médias e populares. O projeto literário dela é uma grande investigação pessoal da história francesa das últimas décadas.
❺ Ela não joga para a torcida, nem tenta caber no padrão que os leitores e editoras costumam gostar. É muito difícil que uma literatura de não ficção, produzida por uma mulher e completamente baseada em sua vida pessoal seja valorizada pela crítica — e pelos leitores.
Eu tenho um bode imenso de como o Karl Ove Knausgård pode escrever seis calhamaços chatíssimos (na minha opinião) falando sobre a sujeirinha do canto do umbigo dele e o pessoal fica noooossa. Mas vai fazer isso aí sendo mulher. Vai cometer um décimo dessa egotrip sendo mulher e sua obra será taxada de literatura confessional. De diarinho, de fofoca, de Carrie Bradshaw.
A Annie Ernaux ganhou um Nobel sem fazer nenhuma concessão, e isso é respeitável demais da conta.
Ju, adorei o Nobel e o seu comentário - particularmente sobre as mulheres.
Sobre os franceses, me intriga demais eles não darem bola pra ela, mas a descrição q vc colocou me lembou mto Duras... pra quem eles dão bola.
Ou será que dão agora? Confesso que não sei.
😍