Problemas de Leitura
Novo livro de Tati Bernardi apresenta leituras equivocadas que vão de experiências às epígrafes

Tati Bernardi comprou um martelo — e se ressente de situações que exigem qualquer outra ferramenta. A Boba da Corte, seu livro mais recente, é uma tentativa de politizar esse ressentimento em seis crônicas autobiográficas sobre seu próprio processo de ascensão social, partindo da classe média do Tatuapé rumo à elite de Higienópolis.
O argumento fundamental que informa todos os textos é o de que, embora tenha subido na vida e ocupe lugares de destaque graças a méritos e talentos objetivos e individuais, a autora nunca teria sido aceita por uma elite paulistana imaginária.
A premissa é errada em muitos níveis. É errada porque cria uma elite monolítica cujo único elemento de coesão é o desejo de excluir Tati Bernardi. É errada porque entra em contradição direta com o reconhecimento público que a própria autora exibe dentro e fora da obra. É errada porque combina uma leitura equivocada e instrumental de teorias e tradições que não se aplicam ao caso da heroína do livro com observações empíricas superficiais e mal interpretadas, quando não inverossímeis.
Essa maçaroca de distorções pode parecer inofensiva — afinal, cada um força a barra que pode para construir sua narrativa de superação. O problema é que o coitadismo de Tati tem mais ressonância social do que deveria, apoiando-se no sentimento de inadequação inerente a todo ser humano e no tradicional anti-intelectualismo brasileiro para promover uma inversão de valores já muito desgastados, começando pela própria ideia de meritocracia.
Não pretendo fazer uma análise propriamente literária do livro. O que desejo é explicar: a) por que as premissas de Tati não fazem sentido; b) como o livro se baseia em influências intelectuais que a autora claramente não domina; e c) por que a heroína que ela constrói não é uma vítima do elitismo paulistano, e sim uma rica mimada inconformada com o fato de que ainda haja alguma porta que não possa ser aberta simplesmente tacando dinheiro em cima.
Uma citação inadequada
O problema começa nas epígrafes, com citações a obras que a autora não leu ou não compreendeu. A primeira delas é ao romance Mudar: Método, de Édouard Louis. A segunda, ao livro A Teoria da Classe Inadequada, de Raffaele Alberto Ventura.
A citação a Ventura está simplesmente errada. Bernardi passou pela livraria, viu um livro com a palavra “inadequada” estampada na capa e pensou: “Poxa, é assim que me sinto, vou levar”. Na obra do ensaísta italiano, a inadequação é um conceito um pouco mais específico. Para ele, a classe inadequada seria formada por uma turma que investiu pesado em capital cultural nas últimas décadas, mas, de repente, se viu em um mercado de trabalho e em uma sociedade que já não estavam dispostos a premiar esse tipo de investimento. Essa classe seria inadequada porque teria aspirações burguesas em termos de consumo, reconhecimento e estabilidade, porém viveria em condições materiais muito semelhantes às do uberizado mais precário.
Esse descompasso brutal entre investimento em cultura e retorno econômico e simbólico geraria um bololô de rancor e frustração, fazendo com que essas pessoas se entregassem a uma competição cada vez mais feroz por oportunidades cada vez mais raras, que trariam recompensas cada vez menores.
O próprio Ventura se enxerga como parte dessa classe disagiata e não a romantiza. Sim, sim, é triste que os inadequados tenham recebido cartas tão fracas nesse jogo da vida. É triste perceber que, em décadas anteriores, eles teriam conseguido empregos decentes, espaços decentes e teriam se tornado intelectuais (provavelmente esquerdistas) decentes. A questão é que, diante da não concretização dessas expectativas, os inadequados não estão agindo de forma nem um pouco decente. Em vez de gerar belas lutas coletivas, essa frustração está instaurando um jogo sujo de todos contra todos.
“A classe inadequada está, ao mesmo tempo, convencida do destino de derrota que a espera e condenada a dar tudo numa competição desesperada”, diz Ventura, na epígrafe de Bernardi. Dar tudo de si não significa apenas se esforçar em dobro, mas também conceder em dobro, aceitar humilhações em dobro, atacar os concorrentes em dobro — e assim, ladeira abaixo. Ou seja, a classe inadequada não é uma “classe para si”, no sentido marxista — é uma multidão dispersa, esgotada e cada vez mais belicosa entre si.
O que essas ideias teriam a ver com a literatura em questão? Com os sofrimentos de nossa heroína publicitária, roteirista de comédias da Globo, universalmente injustiçada e incompreendida por parentes que assistem ao SBT, por cariocas desorientadas, por aristogatos de Higienópolis e por pobretões de Perdizes?
Na vida real, alguns dos vilões do livro provavelmente poderiam ser incluídos na classe inadequada de Ventura, mas não são definidos dessa forma na obra. Pelo contrário. Todos os personagens que têm ou parecem ter algum estofo intelectual são ridicularizados e postos como incompetentes por não terem conseguido transformar seu conhecimento em dinheiro. Tudo aquilo que Ventura trata como problema coletivo e dos tempos, Bernardi trata como preguiça e falta de talento por parte desses indivíduos, sempre invejosos de seu magnífico sucesso.
Para encaixar o conceito de Ventura nas crônicas de Bernardi, só estabelecendo uma oposição entre a narradora e os inadequados. Afinal, a classe pensada pelo italiano está com um problema de convertibilidade de capital cultural em capital econômico. Já a autora e sua heroína vivem o oposto disso. Bernardi é o milagre da multiplicação de um capital cultural pífio em uma quantidade desproporcional de capital econômico e simbólico.
Mas nada disso importa porque, na apropriação dadaísta da autora, a citação de Ventura fala sobre ela: sobre o desconforto que ela sente em qualquer meio social que não a aceite de modo imediato e irrestrito, independentemente do fato de não cumprir os requisitos dos clubes aos quais pleiteia acesso ou de desprezar seus membros, sua fundação e tudo o que eles representam.
Há uma elite que se importa com louças Vista Alegre. Outra que se deslumbra com a Galeria Uffizi. Outra com músculos e casa em Ilhabela. Parece até que, em uma delas, o legal é ser pobre, escrever livro encalhado e ter a pele oleosa. Na outra elite, basta ir ao Butantã duas vezes por semana e encomendar seu diploma de mestrado.
Bernardi fica indignada com tudo isso, mas não pelos motivos que você imagina. Para ela, a injustiça não está no preço da sopeira, dos hotéis de Florença ou da Bioritmo. Não está na falta inexplicável de uma estação de metrô dentro da Cidade Universitária. O escândalo é que não dá para passar tudo isso no débito. Veja você: além de ter o dinheiro da louça, a pessoa ainda tem de saber qual seria a marca bacana. Além da passagem, da hospedagem e da mensalidade do cursinho de História da Arte, ainda tem de fazer a maldita aula.
Mas quem disse que ela tinha de participar de algum desses rituais? Eles foram pré-requisitos para que conseguisse publicar seus livros, colunas, fazer seus filmes? Bernardi seria demitida da Globo, da Folha ou da agência do sei lá o quê caso descobrissem que ela não frequentou o Colégio Santa Cruz? Pois aqui começa a forçação de amizade com a chamada literatura dos trânsfugos (ou desertores) de classe, explicitada no livro pela epígrafe que cita Édouard Louis.
Uma vida que não era a dele
Narrativas sobre as agruras da mobilidade social são tão velhas quanto a própria mobilidade — O Vermelho e o Negro, O Jovem Werther, Jane Eyre, A Mão e a Luva. No entanto, um subgênero contemporâneo dessa literatura, bem diferente do romance de formação tradicional, ganhou notoriedade especialmente após Annie Ernaux ser laureada com o Prêmio Nobel, em 2022. Esse movimento tem sido chamado de “autoficção sociológica”, expressão usada pela própria Ernaux, ou de “auto-socioanálise”, nos termos de Didier Eribon, e inclui autores de origem francesa que narram suas próprias subidas na vida através de uma lente declaradamente bourdieusiana.
O que caracteriza esses autores é sua condição de trânsfugos de classe: indivíduos cuja saída da pobreza foi condicionada a uma traição das próprias origens e à reinvenção radical da própria identidade, apagando deliberadamente todos os traços que pudessem ligá-los aos seus mundos de origem. Seus narradores não apenas mudam de classe social, mas são obrigados a negar sua cultura anterior para serem aceitos em seus novos círculos.
É justamente o caso de Édouard Louis, que nasceu em uma vila operária em uma das partes mais pobres da França, filho de um ex-operário aposentado por invalidez e de uma dona de casa que às vezes fazia bico como doméstica. Massacrado pela pobreza e pela homofobia de seu meio, Louis enxergou na escola uma chance mínima de escapar daquilo tudo. Inteligente, ele logo percebeu que, para isso, não bastava estudar: era preciso corresponder à imagem altamente preconceituosa e estereotipada do que seria um aluno promissor. Na prática, era preciso parecer um menino burguês que acidentalmente nascera pobre, e não uma poc filha de operário.
Simultaneamente ao aprendizado escolar, Louis se dedicou ao currículo oculto de desaprender seus modos de comer, falar, gesticular e rir como o jovem provinciano, pobre e afeminado que era, e reaprender todas essas práticas corporais como o burguês parisiense e sofisticado que queria se tornar. Como um ator ensaiando um novo papel, foi se desvencilhando de qualquer traço físico, cultural e psicológico que pudesse conectá-lo a seus parentes e vizinhos. E foi assim que conseguiu se destacar na escola, atrair favores de professores, galgar vagas em liceus e terminar sua educação em universidades de prestígio.
Uma característica fundamental desse processo é que não bastava adicionar novos conhecimentos. Ele não tinha a opção de dominar ambos os códigos, de se tornar bilíngue, de transitar entre Hallencourt e Paris quantas vezes quisesse. O método exigia a negação absoluta da cultura anterior, de modo que seu mundo original se tornasse estranho para ele mesmo.
Assim, o preço pago pela ascensão social foi se transfigurar em outra pessoa, algo simbolizado dramaticamente pela mudança de nome que o transforma de Eddy Bellegueule, como foi batizado, em Édouard Louis. Não surpreendentemente, tudo isso lhe gerou uma baita cisão interna, como se fosse duas pessoas ao mesmo tempo, nenhuma delas especialmente verdadeira. Ele sente “como se vivesse uma vida que não era” a dele — como diz na epígrafe de A Boba da Corte —, porque deveria viver a vida de Eddy Bellegueule, quando está vivendo a de Édouard Louis.
Mas todo esse trabalho e toda essa violência ainda não bastavam. Mesmo o assassinato simbólico de sua identidade original não foi suficiente: seria preciso ocultar o cadáver de Eddy Bellegueule para o resto da vida, porque o que importava não era apenas dominar os códigos, mas conseguir convencer os outros de tê-los herdado naturalmente. Se as pessoas descobrissem que tudo aquilo foi intencionalmente aprendido, e não adquirido inconscientemente desde a infância, através do contato familiar, seus esforços seriam considerados mero falseamento.
Assim, o tom de revolta que permeia Mudar: Método vem da constatação de que, mesmo tendo se esforçado em dobro para dominar a forma e o conteúdo que lhe abriram as portas do meio intelectual francês, Louis sempre estaria prestes a ser posto para fora da festa. Sua aceitação nunca seria completa, definitiva e cristalizada, porque bastava um passo em falso para que alguém descobrisse o cadáver de Eddy Bellegueule.
Uma sociologia que não era a dela
Você pode falar o que quiser dos livros de Louis, Ernaux, Eribon e companhia, mas todos eles se baseiam em argumentos sociológicos com pé e cabeça. Não é o caso de A Boba da Corte. Por mais que Bernardi também tenha subido na vida, sua trajetória não tem nada a ver com a desses autores, e a tentativa de copiar o argumento apresentando uma experiência tão discrepante como evidência faz com que seu livro pareça um pastiche incongruente.
Bernardi nasceu numa família de classe média do Tatuapé que gabaritava o Censo de 94, estudou em boas escolas particulares, foi para a Disney e se formou em uma faculdade particular tradicional. Depois, trabalhou com publicidade, tornou-se roteirista da Globo, fez filmes, virou colunista da Folha, apresentadora de vários podcasts famosos, figura pública de grande visibilidade e alguém muito contente com seus próprios ganhos financeiros.
Em outras palavras, ela partiu de uma posição já confortável em termos de renda, segurança e acesso a bens culturais e teve uma trajetória de sucesso dentro de um mesmo universo social. Em vez de romper com a cultura familiar, prosperou a partir dela. Cresceu assistindo ao SBT com a família para, mais tarde, escrever roteiros de comédia da Globo que dialogam com esse mesmo tipo de público e de humor. É claro que, nesse processo, precisou aprender coisas novas — quem não precisou? —, mas não teve de se tornar outra pessoa, negar suas origens ou perder contato com seu mundo anterior. Pelo contrário: perder esse contato a impediria de produzir entretenimento para pessoas como seus próprios parentes, e suas origens parecem ter impulsionado, e não atravancado, seu sucesso.
Um trânsfugo de classe é literalmente um desertor de classe. É alguém que rompe, que nega, que corta vínculos. Isso significa que, não importa o quanto você se distanciou geograficamente ou materialmente do lugar onde nasceu, não importa se estudou setecentas vezes mais do que toda a sua família combinada: se você continua sendo capaz de ir e voltar, de manter relações legítimas com quem ficou pra trás, se consegue entender e ser entendido, então, meus parabéns, você não é um trânsfugo de classe.
Ser trânsfugo não é mérito, é confissão. Édouard Louis admite ter assassinado seu antigo eu e embarcado em um processo patético e intencional de imitação de traços aburguesados, tudo isso em nome de uma ascensão completamente individual, que não avança e até atrasa qualquer projeto coletivo e classista. A justificativa para essa vilania é que não havia outro jeito: a única rota de fuga que conseguiu enxergar para a situação insuportável em que vivia foi a via escolar, e esses eram os termos impostos por ela.
Bernardi não vivia nenhuma situação insuportável, não ascendeu pela via escolar nem traiu sua própria classe. Então, qual seria a semelhança? E para que admitir um pecado que não cometeu? Minha tese é que a autora simplesmente enxergou nessa literatura uma forma socialmente aceitável de dar vazão ao seu rancor contra toda e qualquer elite intelectual. Pra isso, ignorou certos detalhes pelo caminho.
O primeiro detalhe é que a dinâmica que esses autores descrevem não é universal. Não à toa, são todos basicamente franceses do mesmo par de gerações. Afinal, nem toda sociedade (e nem todo campo dentro de uma sociedade) exige que, para pertencer a certa elite intelectual, o sujeito pegue na xícara de determinado modo, muito menos que esse tique esteja na família há vinte gerações.
O segundo detalhe é que nenhum desses autores se revoltou contra o fato de que, para serem aceitos no meio que desejavam, precisavam aprender filosofia, sociologia ou qualquer outra disciplina. Contra o fato de que tiveram de ler textos complexos sobre temas dos quais nunca tinham ouvido falar, ou mesmo contra o fato de que aprender aquilo tudo era inevitavelmente mais fácil para quem tinha certa bagagem familiar. O problema deles era com o currículo tácito, e não com o currículo explícito. Eles criticaram sistemas incapazes de cumprir suas próprias regras meritocráticas, e não o fato de haver qualquer tipo de critério seletivo para o pertencimento em um campo.
O terceiro detalhe é que esses autores narram batalhas inglórias para serem incluídos em 1 (hum) campo, enquanto Bernardi narra sua birra infantil por não ser automaticamente aceita em múltiplos campos. Ela trata como injustiça o que, na verdade, é apenas a lógica normal da diferenciação entre campos sociais e suas formas de capital.
A autora não compreende por que certos tipos de capital e de reconhecimento simbólico que já possui — dinheiro, popularidade, influência midiática, consagração como escritora pop — não são automaticamente convertidos em um prestígio intelectual e acadêmico que ela nem sequer se esforçou para adquirir.
Ela não leu os livros difíceis dos aristogatos e dos sebosos de Perdizes, desistiu do mestrado ao notar que era trabalho demais para algo de tão baixa, incerta e demorada monetização (em vez disso, decidiu usar anotações de aulas que mal entendeu para montar cursos on-line). Tudo isso é narrado por ela mesma ao longo das crônicas. Mesmo assim, sua conclusão é a de que estaria sofrendo uma grande injustiça por parte de uma elite cruel e desaplaudida.
O desaplaudimento, aliás, é sempre a cartada que lança contra seus inimigos imaginários. A “pobreza” de gente que definitivamente não é pobre é outro insulto contumaz, embora a riqueza hereditária de quem não teve de fazer duzentas e trinta e quatro versões de slogans publicitários para comprar um Audi também não seja bem vista. O marketeiro de vinte e sete anos que comia marmita e hoje ganha cento e trinta mil por mês é um idiota por se achar inteligente, afinal, ele só vende sabão em pó. Mas o bem-nascido da Zona Oeste que coleciona diplomas e o self-made intelectual malvestido também são idiotas, afinal, não fizeram dinheiro com isso.
Os jovens de hoje em dia que ela insiste em contratar, “doentes, deprimidos, ofendidos, chorosos, moles”, são mimados por não entenderem que é preciso se matar de trabalhar e ouvir numa boa que entregaram uma merda. Mas esse espírito meritocrático e industrial não vale para o estudo — isso é sempre luxo de herdeiros desocupados ou de lumpens sem noção.
Ironicamente, nenhum de seus vários antagonistas parece particularmente indignado com o prato que recebeu. Em todo o livro, não se vê um publicitário enfezado por não ter recebido um honoris causa, ou um acadêmico aguardando seu primeiro milhão. Só a autora é que gostaria de ser aprovada em vestibulares que não prestou e universalmente aplaudida por grupos que nem toleram uns aos outros.
A parte do querer a gente até entende, mas ver uma mulher de quarenta e cinco anos se jogando no chão por não ser atendida em tão razoável desejo é um pouco esquisito.
Faz meses que escrevi este texto, mas fiquei incomodada com o fato de que ele parece fazer elogios rasgados ao Mudar: Método (que, na verdade, não achei tão legal), e ao Teoria da Classe Inadequada, que é um livro bem complicado. Minhas críticas ao Louis não são dignas de nota, mas o outro eu não quero citar sem explicar os perrengues. Então, decidi acrescentar este P.S. esquisito.
O livro de Ventura parte de observações interessantes sobre a situação das camadas culturais e das chamadas “profissões criativas”, mas é cheio de problemas. O mais grave é que ele desenvolve seu conceito de classe disagiata com base em uma tradução equivocada do termo leisure class (classe ociosa), de Veblen, que foi traduzido para o italiano como classe agiata (classe confortável) e acabou se estabelecendo dessa forma.
Ventura parte mais dessa tradução equivocada do que do próprio Veblen para dizer que classe agiata seria aquela que tem uma realidade material compatível com a própria identidade e que pode pagar por seu consumo ostentatório, enquanto os disagiati (desconfortáveis) seriam aqueles para os quais a conta não fecha.
O problema é que Veblen nunca usou o termo classe agiata, e esse não é um daqueles casos em que o autor não disse exatamente aquilo, mas bem que poderia ter dito. Não é como Marx e a mais-valia, por exemplo: um termo que, embora impreciso na tradução, permanece justo e conveniente para expressar o conceito original. Marx não usou “mais-valia”, mas até devia ter usado.
Aqui, a questão não é um preciosismo terminológico. Ventura alega estar seguindo Veblen, como se seu livro fosse complementar ao trabalho do economista, quando, na verdade, eles nem estão falando do mesmo assunto.
Se está desenvolvendo uma teoria própria, por que se apoiar em outro autor de forma tão distorcida? — esse é o tipo de pergunta inocente que a pós-graduação remove do seu corpo. É claro que ele fez um puxadinho para emprestar a autoridade de um clássico aos seus argumentos. E, no percurso, fez uma maçaroca.
A coisa fica ainda pior quando o livro é traduzido para o português e a Âyiné resolve meter um “classe inadequada” que fica belo no título, porém não condiz nem com o classe disagiata do italiano nem com “classe trabalhadora”, que seria o oposto de leisure class em Veblen. Pra mim, “classe desconfortável”, “desajustada” ou “em desajuste” seriam traduções mais acertadas para a ideia de Ventura. Isso ao menos manteria o caos no mesmo nível que se encontrava no original.
O segundo maior problema do livro é a pretensão universalizante de aplicar o conceito de classe inadequada a todas as épocas históricas e a qualquer ser humano em situação de mobilidade descendente. É assim que uma ideia que poderia dizer alguma coisa caso se assumisse original, pontual e contemporânea acaba não dizendo patavinas.
Eu fui escrevendo este texto no grupo de zap das minhas amigas, de modo que tem bastante ajuda delas aqui no meio. Clara, Vera e Camila, obrigada <3



excelente texto! eu tenho para mim que ela e a outra loira (a do direito) se sentem "inadequadas" (e ressentidas) por terem frequentado uma faculdade particular que tem prestígio para uma certa camada média e média-alta da população (seus pais das camadas abastadas da zona leste e da zona norte) e não a USP, que vira esse lugar simbólico que representa toda uma "elite intelectual da zona oeste" que elas criticam muito mas parecem, ao mesmo tempo, loucas para terem o reconhecimento dessas pessoas enquanto um dos seus (mesmo desistindo do mestrado com um semestre). acho engraçado essa enorme importância/repulsa/ataque que elas dão à usp e aos supostos intelectuais uspianos - em um momento em que 70% dos estudantes de universidades públicas vem de famílias de baixa renda e o acesso ensino superior público é uma das poucas formas comprovadas de ascensão social no Brasil (talvez na USP essa porcentagem seja menor que nas federais, mas ainda sim). é uma imaginação, um pastiche e um recalque do que é universidade pública que não difere muito da turma da direita, se pararmos pra pensar.
Baita crítica, baita análise, como se diz por aí, é pra isso que eu pago internet, queremos mais (se for sobre o Itamar, melhor ainda)