Às vezes eu digo “tchau” e o meu marido escuta “eu te amo”, por isso responde “eu também”, em vez de me dar um “tchau” de volta.
Mas quando outras pessoas dizem “tchau”, ele nunca confunde com “eu te amo”.
Sabe por que isso acontece?
Porque boa parte do nosso entendimento é construída por INFERÊNCIA.
Em uma conversa, a gente não realmente escuta todos os fonemas que as pessoas pronunciam. Em uma leitura, não realmente lemos (nem muito menos entendemos) todas as palavras do texto. Sobretudo nas leituras/escutas mais apressadas, a gente só tenta pegar o mínimo possível e resolve o restante com inferências.
Inferir nada mais é do que completar lacunas de um texto.
Isso vale tanto para lacunas deixadas propositadamente pelo autor quanto por lacunas criadas por falta de clareza do texto, por desconhecimento do leitor ou por algum erro na transmissão.
Se a gente não consegue entender direito um pedaço de uma fala, a gente vai lá e infere o que teria sido dito.
Isso é feito o tempo todo, não só com palavras.
Estou tão acostumada às pessoas serem simpáticas com o meu cachorro que quando ele vai cumprimentar alguém e a pessoa faz um gesto defensivo ou de rejeição, eu demoro uns bons segundos para entender que aquilo não foi um carinho.
Sabe por que isso acontece?
Porque boa parte das nossas inferências são feitas por EXPECTATIVA.
Meu marido já espera que eu diga “eu te amo” pra ele, por isso tem mais chances de ouvir qualquer coisa saindo da minha boca e escutar “eu te amo”.
Eu já espero que as pessoas sejam massa com o meu cachorro, por isso tendo a interpretar qualquer gesto em direção a ele como sendo amigável.
Quando não é o caso, minha cabeça dá um tilt momentâneo até se ajustar a essa nova realidade.
Nos dois casos que citei, as inferências são perfeitamente lógicas porque a expectativa do receptor da mensagem está baseada na FREQUÊNCIA.
Como é frequente que eu diga “eu te amo” pro Júlio, o cérebro dele escuta uma palavra mal pronunciada qualquer e decodifica como “eu te amo”. Como é frequente que as pessoas sejam fofas com o Palito, o meu cérebro pega um empurrãozinho qualquer que um desalmado deu nele e enxerga como um carinho.
No primeiro exemplo que eu usei (tchau/eu te amo), a inferência ocorreu por um problema na transmissão da mensagem.
O Júlio não conseguiu escutar o que eu realmente disse e tentou inferir o que teria sido pelo contexto + expectativas em relação ao emissor.
O segundo exemplo que eu usei foi uma cena em que o meu cachorro faz festa para um desconhecido na rua e a pessoa empurra ele de leve, num gesto de irritação.
Esse exemplo é bem diferente do primeiro — e não só porque um se refere a palavras e o outro a gestos. No caso do cachorro, não há nenhum problema na transmissão da mensagem: eu enxerguei a cena perfeitamente. O problema está na minha decodificação.
Basicamente, o meu cérebro interpretou a cena antes de analisá-la. Quando a análise finalmente foi feita e o cérebro entendeu que ela não correspondia à interpretação inicial, aí ele deu um pequeno tilt.
É provável que gestos de rejeição sejam bem mais frequentes do que eu imagino. Minha expectativa de que o Palito será sempre bem recebido é tão grande que o meu cérebro nem deve se dar ao trabalho de analisar cada gesto de cada estranho que interage com ele: na maioria das vezes, ele deve se contentar com a inferência.
Tanto no exemplo do tchau quanto no exemplo do cachorro, a gente precisa entender que a inferência é feita pelo RECEPTOR da mensagem.
Uma coisa inferida NÃO está no texto. Pelo menos não de forma explícita e indubitável.
Se você me disser: “Juliana, eu te odeio”, eu não posso inferir que você me odeia. Neste caso, o seu ódio estaria expresso com todas as letras.
Para que eu infira que você me odeia, você precisaria dizer algo diferente de “eu te odeio”, mas que eu pudesse interpretar como sendo equivalente a “eu te odeio” com base no contexto e na minha expectativa em relação a você (uma expectativa que — se estiver tudo certo com o meu psicológico — vai ter a ver com as minhas experiências prévias contigo e com a probabilidade de você dizer algo assim).
A inferência é a base da leitura. Sem ela, mal dá para ler qualquer coisa, quiçá ler direito.
Quando ensino aos meus alunos de primeiro ano como ler um texto acadêmico, vejo que a primeira dificuldade deles é a recusa em fazer inferências.
Eles querem ser leitores totais. Querem entender todo o texto. Querem ser uma espécie de Funes, o memorioso, e empreender uma leitura do texto que seja igual ao texto si.
Mas a leitura do texto não pode ser o texto.
Quanto mais repertório (e criatividade) a gente tem, mais complexas e abundantes são as nossas inferências.
Quanto mais experiência acumulamos com o emissor e com o contexto de produção de um texto, mais fácil fica essa tarefa.
Mas um leitor competente não é um mero tapador de buracos.
Para ler direito, a pessoa precisa ter sempre em mente que os buracos foram tapados.
Por ela.
Com diferentes materiais.
Se eu entendi, essas inferências são a construção do diálogo possível entre quem lê e quem é lido. Talvez já esperada pelos autores. Pra mim, fica sempre a sensação despreocupada de incompletude. Outro dia, em um seminário sobre Foucault, fiquei com a impressão de ter perdido alguma coisa na leitura do texto no qual era tratado um tal conceito. A minha fala ficou com um saborzinho agridoce de leitura mais ou menos apressada. Mas pode ter sido sequela da Covid. Valeu pelo texto!
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Quem não gosta do Palito ou de cachorrinhos em geral não tem alma e só faz peso na Terra.