Houve um tempo em minha vida em que frequentei uma academia de rico, dessas com salas temáticas para cada atividade, cronograma elaborado de aulas coletivas e mensalidade equivalente à de uma faculdade popular. Toda segunda e quarta, fazia zumba e pilates. Às terças e quintas tinha ioga, body combat e, às vezes, piquenique de creme com as amigas na sauna. Cada uma traz um creme e as coleguinhas podem experimentar. Recomendo bastante. Abre os poros, descansa a alma.
O inusitado disso tudo é que, entre um chutinho no ar e uma postura do guerreiro, vez ou outra surgia um convite de trabalho. O primeiro foi em uma aula de pilates, quando uma das alunas comentou que precisava de alguém para traduzir o cardápio do restaurante dela, ao que o professor prontamente informou que eu era tradutora. Meses depois, um cara me parou na fila da bioimpedância e perguntou quanto eu cobrava para escrever uns textos para o site da empresa dele. Rolava bastante abstract, revisão de relatório, de trabalho de especialização, às vezes só uns pedidos para que redigisse um e-mail em inglês. Quando dei por mim, a academia tinha virado uma fonte relevante de contatos para frila, mesmo eu sendo uma pessoa bem pouco simpática e sociável nesses ambientes.
Não era só comigo. Minha melhor amiga da academia era gerente em um banco de investimentos e conseguiu umas boas contas no spinning. Nos dias de queda da bolsa, ela quase não conseguia terminar uma aula sem ser interrompida para uma consultoria. Também tinha uma médica bastante abordada no corredor, além de uma advogada, uma estilista e uma professora de matemática. As indicações profissionais aconteciam de modo orgânico e casual. Bastava alguém se queixar de um problema ou apresentar uma demanda para que um colega ou instrutor comentasse que fulano de tal podia ajudar.
No começo, achei tudo muito estranho. Depois entendi que essa era primeira vez que eu frequentava um espaço de elite que não fosse um espaço educacional. Eu achava natural que esse tipo de convite surgisse em lugares como a universidade. Pensava que, embora a pessoa não me conhecesse, ela confiava no selo das instituições a que eu pertencia. Mas como explicar que algo muito parecido ocorresse no ambiente da academia de ginástica?
Pra mim, a explicação reside na identificação de classe e na presunção de que poder aquisitivo e competência andariam de mãos dadas. Se essa pessoa frequenta os mesmos ambientes que eu, então há de ser boa no que faz, mesmo que eu mal saiba quem ela é, o que estudou e o que de fato faz.
Foi nesses meus frilas de academia que pensei quando assisti ao famigerado vídeo da Bettina Rudolph escolhendo dermatologista pelo Instagram. No vídeo, a tal da Bettina — aquela, da propaganda da Empiricus — conta que entrou em contato com uma clínica para marcar uma consulta, e que a secretária disse que ela podia olhar o Instagram de cada uma das médicas que atendiam ali e escolher com quem “se identificava mais”. A conclusão da garota é que “Instagram importa”. Afinal, ela não examinou o currículo das médicas, e sim a persona on-line de cada uma.
Considerando que o novo filão da Bettina é ensinar as pessoas a se projetarem na internet, esse diagnóstico está longe de ser isento, mas também não é necessariamente falso.
No Twitter, o cardiologista José Alencar fez um fio explicando que o buraco era mais fundo do que olhar currículo. Ele criou uma parábola para argumentar que, hoje em dia, você pode marcar uma consulta com um médico de formação exemplar e mesmo assim dar de cara com um picareta que vai te recomendar tratamentos estapafúrdios, milionários e sem nenhuma comprovação científica. Se resolver praticar um pouco de ceticismo e buscar aqueles procedimentos na internet, verá que eles têm chancela de veículos da grande imprensa e de vários outros médicos, criando um circuito fechado de validações anticientíficas difícil de ser quebrado por um leigo em uma breve pesquisa.
De fato, o buraco em que nos metemos é tão profundo que basear suas escolhas em currículo e argumento de autoridade é quase tão ruim quanto escolher médico por performance no reels, ou redatora por molejo na zumba. Estes são tempos em que laureados do Nobel negam o aquecimento global. Em que coordenadores de cursos de medicina descambam para o discurso anti-vacina. São tempos em que não conheço nenhum método prático e confiável de como um leigo poderia escolher um profissional de saúde, por exemplo.
O meu método — usado apenas quando tenho um problema relevante e com o qual me importo muito — é ler ao menos um livro recente publicado por uma editora universitária importante e que se dedique a dar um panorama do assunto. Dessa forma, consigo entender o básico da questão e saber quais são as falácias mais comuns. Munida desse conhecimento básico, confiro quais médicos daquela especialidade atendem o meu plano de saúde, vejo se algum deles escreveu ou falou algo sobre a minha doença na internet e se essa fala contradiz o que aprendi na leitura.
Como podem observar, o método não é simples, não é prático, não é aplicável a qualquer problema de saúde (muito menos a qualquer escolha de profissional que fazemos na vida) e eu nem sequer acredito que seja particularmente eficiente. Sendo só um pouco cínica, dá pra dizer que o meu método é apenas uma versão nerd e gourmet da estratégia da Bettina ¯\_(ツ)_/¯
Mas qual seria o método correto, e quando esse método foi aplicado em larga escala às nossas escolhas?
A cultura da Bettina selecionando dermatologista por performance no Insta favorece picaretas e entertainers como a própria Bettina. Obriga muita gente a manter quase que um emprego paralelo a fim de forjar uma “autoridade” nas redes. Enche nossas timelines de gente sem noção vendendo promessas impossíveis e rendimentos milagrosos. Tudo isso é fato. A questão é que, antes desse nosso presente distópico, o que vigorava não era o talento e o conhecimento. Antes vigorava o CEP, a decoração do consultório, a aparição na imprensa e, principalmente, o nepotismo e a indicação dos nossos círculos de relação pessoal — algo que continua funcionando perfeitamente bem para quem pode e quer estar nos círculos certos.
Com toda a palhaçada, toda a vergonha alheia, a internet abriu um caminho para quem não tem e talvez não tope criar a famigerada rede de relações na carreira. Uma rede que também exige sua própria dose de palhaçada e de performance, de puxa-saquismo, de fazer social com gente uó.
Fora essa situação inusitada de conseguir frilas na ginástica, a verdade é que quase todos os meus trabalhos foram conquistados através do método Bettina de alocação profissional. Alguém leu meus textos na internet e achou que eu daria uma boa jornalista, redatora, tradutora, professora universitária, editora de texto. Eu sempre soube que havia uma alternativa a isso, e que ela estava nos jantares, nas festinhas, nos lançamentos de livros, nas vernissages, nas palestras, em carregar pastinhas e projetores reais e metafóricos. Mas me sinto muito privilegiada por nunca ter tido que me submeter a esses rituais do mundo real, e é por isso que o método Bettina evoca pensamentos contraditórios na minha cabeça.
Enquanto trabalhadora, a pergunta que eu me faço é: de que modo o caminho do networking da vida real seria mais digno e salubre do que o pavoroso caminho da internet?
Enquanto consumidora de serviços alheios, a pergunta que me faço é: de que modo as minhas escolhas seriam mais justas e racionais do que aquelas feitas pelo método Bettina?
PS: No ano passado, comecei a atender algumas pessoas em sessões de consultoria de texto. São sessões de 1h30 via Zoom nas quais você pode trazer qualquer texto, de qualquer gênero ou finalidade e eu edito ao vivo, junto com você, com base nas suas insatisfações em relação ao texto. Para ser sincera, até agora só me apareceram textos acadêmicos, como artigos e projetos de pós, mas eu atendo qualquer tipo de texto, em inglês ou português, e cobro R$ 350 por sessão de 1h30. Quem estiver interessado pode me escrever no juliana.cunha@tutanota.com que eu passo horários e exemplos de textos com antes e depois.
Pois é, pois é, pois é. Talvez a gente não tenha se incomodado tanto com a Bettina só porque ela é o suco de um elitismo que a gente tanto despreza, mas porque infelizmente estamos dentro dessa armadilha do networking sem perspectiva de sair dela e não sentimos orgulho disso - de certa maneira, estamos até nos adaptando a isso. Que agonia :(
Obrigada mais uma vez por escrever.
Bela reflexão!