Páginas envenenadas
Os perigos da leitura, de Sócrates ao começo da histeria midiática do século 18
Essa coisa de leitura não era um assunto tranquilo no século 18. Foi nessa época que a soma de três revoluções mais ou menos separadas começou a dar resultados de massa, e as pessoas deram uma surtada com isso. As três revoluções a que me refiram são a invenção da prensa de tipos móveis por Gutenberg, a ideia de Lutero de traduzir a Bíblia para as línguas vernáculas e o sonho iluminista de alfabetizar geral.
Pela primeira vez na história da humanidade, o número de mulheres alfabetizadas não era estatisticamente irrelevante. Ao menos nos países ricos do Ocidente, uma mulher letrada já não era uma atração de circo, como nos tempos de Safo ou de Christine de Pizan. Pobres e subalternos que sabiam ler e escrever também eram um fenômeno cada vez mais comum, e eles andavam pelas ruas em plena luz do dia, com livros e jornais debaixo do braço como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Mas é claro que não tinha nada normal nessa história. Havia todo um mal-estar pairando no ar. Uma sensação de que tinha gente demais lendo textos demais, de jeitos demais e por motivos demais. As formas de consumir e acessar os textos estavam mudando drasticamente e a leitura ia ficando uma atividade muito mais solitária do que antigamente. Muito mais discreta, sorrateira, fácil de esconder.
Tinha gente que achava que certas pessoas nem deveriam ser alfabetizadas. Outros achavam que a alfabetização em si era uma ferramenta neutra ou até positiva, mas ficavam cabreiros com o uso que ela receberia na mão desses novos leitores. Para esse segundo grupo, a preocupação era saber o que esse pessoal ia ler. Quando, como, onde, em que quantidade e às custas de quem eles leriam.
Eles ficavam se perguntando o que esse zé povinho entenderia dos textos e que tipo de relação estabeleceria com a leitura. Será que essa rapa sairia misturando ficção e realidade? Será que não ficaria tão tomada pela leitura que começaria a esquecer as obrigações e vagabundear no trabalho? Será que ia se deixar levar por qualquer coisa que lesse? Será que esse povo não ficaria ambicioso agora que tinha um vislumbre do mundo fora da sua vidinha de merda? Provavelmente sim, né.
A privacidade era um perigo e, ao mesmo tempo, estava em perigo. Tem uma história famosa de que Agostinho teria ficado chocado ao ver Ambrósio lendo em silêncio, sem nem mexer os lábios. Muita gente diz que o choque seria porque ele não sabia que isso era possível, mas eu li que não é bem assim. Ele provavelmente sabia dessa possibilidade, ela só era muito incomum no século 6.
Pelo menos até o século 17, o normal é que as pessoas lessem em voz alta mesmo quando estavam sozinhas. É somente no século 18 que o jogo vira e, de repente, quase todo mundo está lendo em silêncio.
Esse silêncio era bem conveniente quando a gente estivesse no trem, com várias pessoas lendo o jornal ao mesmo tempo. Mas a coisa mudava de figura quando sua mulher começasse a ler uma carta do seu lado e você já não soubesse que mensagem era aquela. Havia toda uma sociabilidade por correspondência naquela época, as pessoas trocavam cartas o tempo inteiro. Pense nas brigas de casal que ainda rolam por causa de mensagens de texto. Agora pense em uma sociedade bem mais machista e controladora.
O texto é a rua dentro de casa. A pessoa achava que a filha estava segura em casa, protegida da safadeza do mundo lá fora, quando na verdade ela estava sendo pessimamente influenciada por cartas e romances escritos sabe Deus por quem. Pense no caso da pobre Cécile Volanges, em As Relações Perigosas1.
A menina só tinha quinze anos. E estava tudo tão acertado. A Madame Volanges era tão zelosa com a respeitabilidade da filha que só tirou a moça do convento poucos meses antes do casamento com o Comte de Gercourt. Cécile quase não colocava os pés pra fora de casa. O único homem que ela via com alguma regularidade era seu ingênuo e bem-intencionado professor de música — nosso querido Chevalier Danceny. Mesmo assim, todas as aulas aconteciam dentro de casa, debaixo dos olhos da mãe.
Mas não teve muro de convento ou diligência materna que barrasse a influência demoníaca da Marquesa de Merteuil. Imbatível na sórdida arte da escrita, ela lançou sua teia pecaminosa sobre Cécile e Danceny, derrubando a honrada Présidente de Tourvel e até mesmo o safo Vicomte de Valmont de carona. Quando o livro termina, a taxa de fatalidade é impressionante. E tudo isso para quê? Só para se vingar de Gercourt, que teve a audácia de trocá-la por outra.
Há algo de inato na vilania de Merteuil, nisso eu concordo. Mas onde ela conseguiu polir sua amoralidade congênita? Onde aprendeu a transformar seus pensamentos torpes na realidade torpe de outras pessoas? Ela aprendeu com os romances, é claro. Não só com romans libertins de quinta categoria, mas também com os romances de Rousseau — seu favorito. Os mesmos romances que Madame de Staël enxergava como os grandes civilizadores da modernidade se transformavam em armas quando caiam nas mãos de leitores incautos e incompetentes como Emma Bovary2 ou nas mãos de leitores competentes até demais, como Merteuil.
A situação era tão desoladora que mesmo nossos bons e velhos Leitores Tradicionais — nossos estimados homens brancos, ricos, heterossexuais, oriundos dos países centrais — pareciam ter esquecido como ler corretamente. Estavam ficando afeminados e hipersensíveis, deixando-se emascular por uma literatura rastaquera voltada para mulheres ou, pior ainda!, escrita por mulheres.
A verdade é que estávamos saindo de um mundo dominado pela leitura intensiva — onde especialistas dedicavam a vida inteira a ler e reler a mesma meia dúzia de textos, debatendo exaustivamente cada passagem — para um mundo de leitura extensiva, onde todo tipo de gente dava uma passada de olho em uma quantidade inédita de textos todos os dias e raramente parava um instante para refletir sobre algum deles em particular.
Pensando por esse lado, fica difícil rotular todas essas preocupações com a leitura como uma grande bobajada elitista, mesmo sabendo que, sim, a maior parte delas partia de elites conservadoras cujo poder e prestígio estavam sendo abalados pela perda do monopólio sobre os textos.
Veja o caso da Igreja Católica, por exemplo. Um dos motivos pelos quais a Igreja era contra a ideia de que leigos lessem a Bíblia sozinhos, em casa, sem mediação de um padre, era o medo de que isso gerasse um monte de interpretações equivocadas do texto sagrado. Esse não me parece um argumento vazio, nem mesmo hoje em dia3.
No mais, preocupações em relação à leitura não são uma modinha do século 18. Elas estão aí desde a invenção da escrita. Em Fedro, por exemplo, Platão mostra que Sócrates tinha argumentos mais ou menos nessa linha. Ele dizia que a escrita era uma coisa temerária porque criava uma separação artificial entre o autor e suas ideias.
Ele achava que a interação face a face era imbatível porque permitia que a pessoa adequasse seu discurso de acordo com as características de cada interlocutor específico. Em uma discussão ao vivo, você avalia a reação do público em tempo real e ajusta seus argumentos enquanto fala. Isso aumenta muito as chances tanto de ser entendido quanto de convencer alguém.
É algo que os professores fazem o tempo inteiro em sala de aula. Mesmo que ninguém diga explicitamente que não entendeu, dá pra sentir quando a turma está boiando e explicar melhor, usar outros exemplos, dar uma cambalhota. Dá pra ver que um ponto específico despertou o interesse dos alunos e se aprofundar nele. Dá pra notar se algo que você disse pegou mal e se corrigir imediatamente.
Já o texto escrito deixaria o autor basicamente impotente porque ele não teria a chance de se explicar melhor, de calibrar, modular ou reformular seus argumentos a partir desse feedback imediato.
Sócrates ficava louco de pensar que cada vez que alguém entendesse as ideias dele do jeito errado, essa pessoa sairia por aí dizendo que ele defendia umas coisas nada a ver. Ele não entendia por que alguém preferiria ler ideias mortas fossilizadas em um pedaço de papiro do que travar diálogos vivos com pensadores vivos com quem você pudesse conversar, influenciar e ser influenciado, criar novas ideias.
“— (...) Há algo estranho na escrita, Fedro, que a torna exatamente como a pintura. A pintura cria figuras que ficam ali paradas como se estivessem vivas, mas se você perguntar algo a elas, respondem com um silêncio solene. O mesmo acontece com as palavras escritas: ficam ali falando e dá até para achar que têm alguma inteligência, mas se pedir para explicarem algo do que dizem, elas simplesmente repetem a mesma coisa para sempre. Se uma ideia qualquer é escrita, ela sai por aí falando com qualquer um. Conversa com gente que a entende, mas também com gente totalmente inadequada, indistintamente. Não sabe com quem deve e com quem não deve dialogar. Se alguém é grosseiro ou injusto com uma ideia, ela não sabe se defender. Precisa sempre recorrer ao pai.”4
(Adoro como essa citação acaba revelando o lado Mean Girls da posição de Sócrates: em meio às inúmeras desvantagens do texto escrito está o fato de que ele não pode escolher com quem vai sentar no recreio da escola. Essa imagem das ideias como crianças indefesas também é uma pérola.)
A recomendação de “ler com moderação” também tem raízes clássicas. Em 65 a.C., Sêneca alertava contra a glutonia intelectual, e dizia que entornar pilhas de livros de um trago só gerava mais confusão do que qualquer outra coisa. A abordagem estoica ia por um caminho mais slow reading, espremendo os textos e tirando o máximo possível de um autor antes de partir para próximo. Ele dizia que esse método daria mais resultado no longo prazo, mesmo se você acabasse conhecendo menos obras e autores do que colegas mais vorazes.
“Demasiada abundância de livros é fonte de dispersão; assim como não poderás ler tudo quanto possuis, contenta-te em possuir apenas o que podes ler. Dirás tu: ‘Mas sinto vontade de folhear ora este livro, ora aquele.’ Provar muita coisa é sintoma de estômago embotado; quando são muitos e variados os pratos, só fazem mal em vez de alimentar. Lê, portanto, constantemente autores de confiança e quando sentires vontade de passar a outros, regressa aos primeiros. Reflecte todos os dias em qualquer texto que te auxilie a encarar a indigência, a morte ou qualquer outra calamidade; quando tiveres percorrido diversos textos, escolhe um passo que alimente a tua meditação durante o dia.”5
Livros contagiosos, manuscritos envenenados e doenças textualmente transmissíveis também são paranóias típicas do século 18 que têm uma ficha corrida muito anterior. Talvez essa metáfora tenha aparecido pela primeira vez no conto “O rei Yunan e o médico Duban”6, que aparece no Livro das Mil e Uma Noites7. A narrativa conta a história de um médico que consegue curar um rei leproso e recebe recompensas valiosas em troca, além de um cargo como conselheiro real. Porém, isso desperta a inveja do vizir, que o convence o monarca de que o pobre médico estaria planejando matá-lo.
Duban tenta dissuadir o rei da injustiça de sentenciá-lo à morte, mas não consegue, então decide que pelo menos teria vingança. Ele presenteia o monarca com um livro que supostamente trazia conhecimentos inestimáveis, mas faz questão de saturar cada uma das páginas com um veneno mortal. Assim, o rei envenena a si mesmo conforme lambe o dedo para passar as páginas do livro, e morre vítima do mesmo conhecimento que havia lhe salvado.
Ao longo da Idade Média, do Renascimento e entrando pela Idade Moderna, livros envenenados continuam aparecendo em obras de ficção, em discursos religiosos contra textos heréticos e em ataques seculares contra o que quer que seja considerado secularmente herético em cada época.
Mais recentemente, Umberto Eco, gostou tanto dessa imagem que usou como mote de seu primeiro romance, O Nome da Rosa8, ambientado na Idade Média. No livro, um monge passa arsênico nas páginas do último exemplar disponível do segundo tomo da Poética, de Aristóteles. Porque existe essa teoria de que a Poética teria dois tomos: o primeiro seria o que a gente conhece, focado na tragédia, e o segundo seria focado na comédia. O texto da Poética de fato afirma que vai tratar de assuntos que depois não aparecem no livro, mas ninguém sabe ao certo se ele deixou a obra incompleta ou se parte dela se perdeu.
Seja como for, o monge de Umberto Eco não gosta do segundo tomo porque considera que o riso seja uma forma de heresia. Sem coragem de destruir o último exemplar de uma obra tão importante, ele decide envenenar o manuscrito, contando que possíveis leitores lamberiam o dedo para passar as páginas e morreriam envenenados. A estratégia é engenhosa e cria uma espécie de crime sem vítimas, já que a pessoa só morreria se estivesse metendo o nariz onde não foi chamada.
Então, acho que deu pra entender que a leitura gera preocupações e controvérsias basicamente desde sempre. No entanto, essas advertências nunca haviam se transformado em uma onda de histeria coletiva como acontece a partir do final do século 17 até o começo do século 20. E isso tem tudo a ver com a popularização do acesso à alfabetização e com a ascensão do romance realista moderno como forma literária predominante.
(a ser continuado)
PS: Semana passada eu dei uma surtada federal com o ChatGPT. Fiquei achando que não vai ter mais trabalho pra basicamente nenhum redator ou escritor. Que vamos virar meros revisores de lero-lero produzido por IA. Aí pensei que eu devia ao menos escrever em inglês, pra aumentar minha sobrevida na profissão. Este texto que você acaba de ler foi escrito em inglês, depois traduzi para o pt. Fiz uma seção no Substack só pra colocar textos que eu porventura escreva em inglês. Ela funciona como uma newsletter separada, porque assim eu não fico enviando coisa em inglês para quem vai achar isso chato. Se quiser receber, você precisa clicar aqui e assinar esta seção específica, mesmo se já for assinante da newsletter geral. Outra opção é me mandar um e-mail dizendo que quer ser incluído. Se puder enviar o texto para algum amigo gringo, eu agradeço <3
As Relações Perigosas, Choderlos de Laclos. Tradução de Dorothée de Bruchard. Penguin-Companhia, 2012. Publicado em francês em 1782, com o título de Les Liaisons Dangereuses.
Madame Bovary: Costumes de Província, Gustave Flaubert. Tradução de Mário Laranjeira. Penguin-Companhia, 2011. Publicado em francês em 1856, com o título de Madame Bovary: Mœurs de Province.
Em 2007, o Fantástico fez uma matéria sobre um pastor que achava que Oséias, capítulo 3, o autorizava a ter casos com mulheres casadas que frequentavam sua igreja. A interpretação era totalmente disparatada, e o homem era precariamente alfabetizado. Mas o trecho em questão de fato é uma passagem complexa, na qual Deus ordena que Oséias perdoe sua esposa Gomer, que o traiu e acabou sendo vendida como escrava em um prostíbulo. Deus diz que Oséias deve agir com Gomer como Ele agiu com Israel, que também o traiu com outros deuses.
Tradução indireta minha, a partir do livro em inglês. Depois eu vou encontrar o exemplar da 34 e substituir aqui no post. Fedro, Platão. Tradução de José Cavalcante de Souza. Editora 34, 2016. Escrito por volta de 370 a.C.
Cartas a Lucílio, Lúcio Aneu Sêneca. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos. 2 ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. Carta 2, p. 3–4.
O Infinito em um Junco: A Invenção dos Livros no Mundo Antigo, Irene Vallejo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Intrínseca, 2022. Publicado em espanhol em 2019, com o título de El Infinito en un Junco: La Invención de Los Libros en el Mundo Antiguo.
Livro das Mil e Uma Noites: Volume 1, Ramo Sírio. Tradução de Mamede Mustafa Jarouche. Biblioteca Azul, 2017.
O Nome da Rosa, Umberto Eco. Tradução de Homero Freitas de Andrade e Aurora Bernardini. Record, 2022. Publicado em italiano em 1980, com o título de Il Nome Della Rosa.
seu texto me fez lembrar da disciplina leitura, educação e cultura que fiz a unicamp em que li Roger Chartier (historiador do livro e da leitura) e Lúcia Santaella (que trabalha com leitura digital). vou dar um google no que eles estão falando sobre o chat gpt. sempre um prazer ler você, Juliana.
Bem interessante o texto, obrigado por compartilhar. Gostei bastante da parte sobre Fedro e as diferenças de uma discussão ao vivo em que a reação do público permite o ajuste imediato. Isso me faz pensar no quanto peças de teatro acabam incorporando sobre o público e sobre as vantagens de serem expostas constantemente ao público, um exemplo muito claro disso são as peças do Shakespeare que sofriam constantes mudanças. Impossível não fazer a ponte entre este processo a o processo atual de desenvolvimento de modelos de linguagem (e.g. ChatGPT) em que o processo de correção para instruções acaba tendo um efeito extremamente eficiente dado a quantidade de correções (quando comparado com o pré-treino).