A Volkswagen lançou uma propaganda em comemoração aos seus 70 anos no Brasil. O comercial consiste em um pastiche gerado por inteligência artificial que coloca a cantora Elis Regina, morta há 41 anos, ao lado de sua filha, Maria Rita.
No vídeo, mãe e filha cantam “Como nossos pais”, um dos maiores sucessos da carreira de Elis. A ironia é que todos os elementos da peça — sobretudo o fato de ela ser o elogio piegas de uma montadora de carros — vão de encontro tanto à mensagem da canção quanto às posturas que a artista mantinha quando estava viva.
Se alguém quiser dignificar o filistinismo publicitário, pode dizer que se trata de uma música contrapontística, como são chamadas as trilhas sonoras que entram em contradição deliberada com aquilo que é apresentado na cena de um filme. O mais provável, no entanto, é que nenhum dos envolvidos tenha entendido e/ou se importado com o fato de que tudo naquela propaganda entra em choque com o trabalho, com a carreira e com a postura política de Elis. Nem mesmo seus três herdeiros: os filhos João Marcello Bôscoli, Pedro Mariano e Maria Rita, que autorizaram a peça e lucraram com ela.
Ninguém sabe o que Elis Regina estaria fazendo hoje, caso não tivesse morrido aos 36 anos, nem o que ela pensaria da vida. Mas, em 1979, Elis estava cantando de graça no Show de Maio: um evento para arrecadar dinheiro para o fundo de greve dos metalúrgicos do ABC. Antigamente, os mortos não reviam suas posições, de modo que, antigamente, Elis passaria toda sua longa morte cantando a greve e os trabalhadores, e dificilmente teria tempo de cantar também as montadoras de carro.
É preciso muita tecnologia para levantar os mortos de suas tumbas e convencê-los a encenar sua própria farsa. A AlmapBBDO, agência de publicidade responsável pela peça, explicou que a peça utilizou uma tecnologia de redes neurais artificiais conectada a uma dublê. No momento da edição, a atriz foi substituída por sons e imagens gerados a partir de um banco de dados com vídeos da cantora morta.
Esteticamente, não ficou grande coisa, mas o circo chamou atenção por empregar uma tecnologia de ponta chamada de “redes adversárias generativas” (generative adversarial networks), mobilizando duas inteligências artificiais de famílias diferentes: uma para encaixar o som da dublagem (e que é chamada de “deep dub”) e outra para gerar as imagens (e que é sintomaticamente batizada de “deep fake”).
É doido como antes você podia herdar o LEGADO de um artista. Ou seja, o que aquela pessoa fez e deixou para a posteridade. Isso já era um conceito difícil de defender, e dava aos herdeiros o poder de ressignificar a obra do artista de muitas formas, fazendo-a parecer maior e mais importante ou — mais frequentemente — apequenando-a.
Sempre teve herdeiro publicando coisas que o artista ativamente decidiu descartar, expondo o que ele passou a vida tentando superar, promovendo edições questionáveis, enriquecendo às custas da vergonha alheia, reduzindo tudo a caça-níquel.
Agora é mais grave porque já não é “só” uma questão de selecionar, dispor e associar a obra do artista da forma que lhe parecer conveniente. Agora você pode efetivamente produzir coisas NOVAS. Pode herdar o baú do Kafka e ainda ir socando coisas lá dentro.
Agora até os mortos produzem: isto que é a imensa sacanagem.
Na época em que o capitalismo ameaça prescindir do trabalho dos vivos, tudo o que a gente mais precisava era de um deepfake em que Elis Regina canta a novidade dos patrões.
Olha isso: a VW tem uma propaganda que simula a Elis e a Maria Rita fazendo um dueto ( Como Nossos Pais), ambas dirigindo VW’s e cantando.
Para simular a Elis pilotando uma Kombi usaram inteligência artificial para afrontar ou esmagar a inteligência natural de tantos outros.
É uma peça absurda não só pelo “realismo fantástico” a serviço de uma empresa que tem demitido e explorado sistematicamente os obreiros de São Bernardo e outras praças do Brasil. O absurdo maior é que Elis cantava Rancho da Goiabada com João Bosco em 1979 no Primeiro de Maio de 1979 para alimentar o caixa do fundo de greve dos metalúrgicos do ABC.
Não sabemos como seria a Elis hoje, vão dizer. Mas o fato real é que sabemos como era a Elis antes de morrer. Os mortos não mudam e têm a prerrogativa de habitarem nossas memórias.
Nenhum herdeiro deveria lucrar sobre um pastiche de publicidade, um arremedo de propaganda em que a garota propaganda não tem a oportunidade de se opor a esse uso da memória herdada.
Belchior também não está mais aqui nem mesmo para andar caminho errado pela simples alegria de ser. Como fazer quando o capital continua esmagando o trabalho e glamourizando a violência do roubo do tempo de vida do operário usando a imagem e a memória de pessoas que morreram defendendo ideias que estavam, para dizer o menos, em contradição com aquelas dos senhores da montadora criada na Alemanha na década de 30 ( o que é autoexplicativo do nível de exploração nas fases iniciais da marca)?
Pergunta longa seguida de pausa mais longa ainda para que se pense no beco sem saída da apropriação das imagens de qualquer pessoa. Qualquer pessoa, mesmo os defensores dos trabalhadores: a imagem de Frida Kahlo é superestimada no aspecto feminista para omitir ( sempre) que Frida era comunista ( do partido mesmo).
Isso tudo faz pensar para que vai servir a inteligência artificial conforme ela seja mais e mais habilidosa.
Para que e a quem vai servir.
Se a história nos ensina alguma coisa, já temos uma ideia da resposta, quase uma certeza.
Elis não merecia isso , Belchior também não.
Belchior e Elis sendo usados covardemente para comemorar uma montadora que colaborou com a ditadura.