Eu não devia ter um único nanograma de testosterona quando vi Leonardo DiCaprio pela primeira vez, em Romeu + Julieta (1996), emoldurado pelas ruínas de um teatro feito só para aquilo, ao som de "Talk Show Host", do Radiohead. Talvez não tenha sido o primeiro filme decente que vi na minha vida, mas foi a primeira vez que eu soube que estava vendo um filme decente, e isso conta.
Depois, eu e minha irmã assistimos a todos os filmes do DiCaprio. Todos, inclusive aqueles que os adultos encarregados não deveriam deixar crianças de dez e doze anos assistirem. Mas era o DiCaprio, o galã inofensivo, o frango que as meninas se autorizavam a gostar, quem pensaria em vetá-lo? E até hoje agradecemos ao rapaz por desde cedo só ter escolhido ótimos trabalhos.
"Talk Show Host" não foi a única música do Radiohead a entrar naquele filme: também havia “Exit Music (for a Film)”, feita especialmente para a ocasião, e que tocava nos créditos. Será que reparei nela em alguma das trezentas vezes que assisti àquilo ainda criança e adolescente? Acho que sim, e ninguém precisa saber inglês (ou mesmo pescar o contexto) para ser atingido pelo tom de lirismo seguido de ameaça que escorre dessa faixa.
Seja como for, essa música é importante pra mim hoje, e queria arriscar uma hipótese sobre ela. Aqui vai um esboço de análise — com um pedido de desculpas prévio, porque me aventurei a analisar não só a letra como também a melodia, os arranjos, a performance vocal e outra pá de coisas sobre as quais não entendo rigorosamente nada. Porém, como a melhor forma de pesquisar na internet ainda é dizendo algo errado, aqui está a minha contribuição para o esforço coletivo de entender essa música.
A minha tese é de que a canção é estruturada em três atos dramáticos, dois deles contando a história de Romeu e Julieta de forma similar à peça original e ao filme de Baz Luhrmann. Porém, no terceiro ato, o Radiohead se desvia significativamente desse caminho ao apresentar um Romeu contestador, que rejeita o papel redentor atribuído a ele na tragédia shakespeariana.
Na minha cabeça, a divisão dos atos seria a seguinte:
Aqui, a mesma divisão na letra traduzida:
Romeu é o eu-lírico de todos os três atos, mas sua situação, posição e destinatário se alteram em cada movimento. No primeiro segmento, a canção estabelece a intimidade conspiratória entre os amantes ainda vivos. As palavras de Romeu dirigem-se diretamente a Julieta, tecendo o plano de fuga do casal e tentando acalmá-la. Não estamos no melhor dos momentos: o tom não é de paixão delirante e empolgada, e sim de ternura e convencimento em meio à crise. É como se a canção já começasse no terceiro ato da peça, após as mortes de Mercúcio e Teobaldo e da consequente condenação de Romeu ao exílio.
Musicalmente, este primeiro ato se caracteriza pela moderação e pelo murmúrio. A voz de Thom Yorke mal se afirma. É uma voz carinhosa, consoladora, urgente e secreta, que desperta a amada, ordena preparativos, teme o tumulto, pede discrição:
Wake from your sleep
The drying of your tears
Today, we escape, we escapePack and get dressed
Before your father hears us
Before all hell breaks loose
Com variações sutis na voz, nosso feio transmite desejo e expectativa ao cantar "today, we escape, we escape" e uma mistura de aflição e desdém em "before all hell breaks loose". A melodia vacila, repete-se em intervalos reduzidos, enquanto a harmonia repousa em poucas notas, como se evitasse acordar alguém. O acompanhamento minimalista, focado em guitarra e texturas eletrônicas delicadas, intensifica a sensação de fragilidade e intimidade.
Em determinado momento, surge um arranjo reminiscente de música sacra enquanto Romeu se esforça para superar os temores de Julieta, implorando sua colaboração para não carregar sozinho o peso da fuga:
Breathe, keep breathing
Don't lose your nerve
Breathe, keep breathing
I can't do this alone
Sing us a song
A song to keep us warm
Neste primeiro ato, Romeu desempenha múltiplas funções discursivas: propõe, planeja, ordena, consola, motiva e encoraja a amada. O discurso alterna entre o imperativo prático ("pack and get dressed") e o suporte emocional ("breathe, keep breathing"), revelando a tensão entre urgência e ternura que caracteriza o amor em situação extrema, além da passividade juvenil e *feminina* de Julieta, exatamente como na obra original.
O segundo ato consiste em um único verso que assinala a transformação ontológica da narrativa: "There's such a chill, such a chill". Aqui, o interlocutor já não é claramente Julieta — o verso parece dirigir-se simultaneamente a si próprio, à amada, ao vácuo. Este momento sugere a transição para a morte: a fuga fracassa, o amor não escapa, o corpo esfria.
Musicalmente, esta passagem funciona como uma suspensão fantasmagórica. A linha melódica rompe sua cadência anterior, tornando-se melódica e harmonicamente ambígua. O timbre eletrônico começa a predominar, sugerindo o afastamento gradual do corpo físico (dizem as vozes da minha cabeça). Camadas harmônicas mais frias — possivelmente sintetizadores ou reverberações prolongadas — entram na mixagem, preparando a transformação radical que está por vir. Ao fundo, parece haver ruído de pessoas, de rua, talvez de um parquinho. É Romeu que morre e a vida que segue.
Este verso único atua como portal: marca o instante em que o narrador se desloca de sua posição de sujeito vivo e esperançoso para a nova condição enunciativa que assumirá no ato final.
Bonito até aqui? Bonito demais, porém completamente rente aos significados da tragédia original. Até aqui, o Radiohead contou a história de Shakespeare, fez um ótimo remake.
No terceiro movimento, a banda vai tocar em outro rumo. Agora, um Romeu já morto pragueja contra seus algozes — as duas famílias, a sociedade de Verona, todos os que permaneceram vivos. A função discursiva se transforma completamente: não se trata mais de planejar ou consolar, mas de condenar, amaldiçoar e desprezar. A postura vocal muda drasticamente. Acho que mesmo quem não compreende inglês percebe que mudamos de interlocutor:
And you can laugh
A spineless laugh
We hope your rules and wisdom choke you
Now we are one in everlasting peace
We hope that you choke, that you choke
We hope that you choke, that you choke
We hope that you choke, that you choke
Este terceiro movimento da canção é a grande ruptura com Shakespeare. Na peça original, Romeu e Julieta são vítimas dóceis e inocentes — mártires privados de disputas públicas, cuja morte serve como sacrifício redentor que reconcilia as famílias. Eles são bons demais para aquele mundo, puros demais, e sua morte melhora o mundo que não os acolheu. O Romeu do Radiohead, porém, se recusa a assumir essa posição sacrificial. Ele olha de fora — a partir da morte — para os que sobreviveram, e diz: fodam-se.
A acusação é precisa e implacável: primeiro vem o escárnio ("you can laugh") — eles zombam, fingem normalidade, seguem adiante como se nada tivesse acontecido, como sugere o murmúrio urbano que ecoa ao fundo. Em seguida, a caracterização moral desse riso: "a spineless laugh" — uma risada sem espinha dorsal, covarde, que revela a submissão cega a convenções, preconceitos e politicagens. Mas o golpe final vem na maldição direta: "we hope your rules and wisdom choke you" — que as próprias estruturas normativas que geraram a tragédia os sufoquem, junto com a suposta sabedoria adquirida tardiamente. A paz invocada — "now we are one in everlasting peace" — não carrega transcendência espiritual, mas sim a frieza da constatação: é o reconhecimento definitivo do fim, não sua sublimação.
No aspecto musical, este movimento final não apenas verbaliza a recusa ao martírio — ele a materializa sonoramente. O registro vocal se expande dramaticamente, enquanto a voz fica áspera, distorcida, amplificada até beirar o berro. A entrada da percussão e das camadas instrumentais assinala o momento em que a música rompe com sua própria moderação inicial. A reiteração compulsiva de "we hope that you choke" assume características de ritual amaldiçoante, onde música e palavra se fundem numa única força de ressentimento.
A peça de Shakespeare se resolve através da catarse clássica: as mortes juvenis despertam as famílias para a futilidade de sua rivalidade, promovem a reconciliação, inspiram monumentos comemorativos, transformam sofrimento em aprendizado. É o movimento arquetípico da tragédia — do caos emerge a ordem, da cegueira nasce a visão, da violência brota a harmonia. As vidas perdidas adquirem propósito redentor para toda a coletividade.
Só que, no Radiohead, o verso "we hope your rules and wisdom choke you" diz: nem por um caralho. Aqui, Romeu deseja que seus carrascos sejam asfixiados não somente pelas normas irracionais que mantinham antes da catástrofe amorosa, mas também pela sabedoria supostamente conquistada através do aprendizado trágico.
Trata-se de uma negação absoluta da função pedagógica da tragédia. O morto recusa-se a ser instrumentalizado como exemplo edificante. Ele rejeita que sua destruição seja convertida em crescimento moral alheio. E seria impreciso falar em "justiça" — há aqui mais um desdém profundo por essa consciência tardia que não muda nada para quem já partiu. É quase um protesto: "Não façam de nossa morte uma lição de moral pra vocês." Daí a repetição obsessiva final — "we hope that you choke" — se torna uma fórmula encantatória de maldição. É a rejeição ativa da redenção coletiva através do sacrifício individual.
Nesse trecho, a performance vocal e os arranjos ficam furiosos, mas gradualmente retornam à contenção, mantendo intacta a mensagem de condenação. Não se trata de um surto passageiro de ira — o eu-lírico sustenta sua praga mesmo após o retorno da serenidade. Nesse momento, ressurge o arranjo que evoca aquela atmosfera sacra e, nos momentos derradeiros, retorna aquela sonoridade que remete ao burburinho de um parque infantil. É o mundo retomando sua rotina depois da morte trágica dos amantes, enquanto Romeu mantém inabalável sua posição final.
Assim, "Exit Music (for a Film)" promove uma reconfiguração radical do mito de Romeu e Julieta ao construir um protagonista que rejeita categoricamente seu papel de vítima redentora. O Romeu criado pelo Radiohead emerge como uma figura de resistência póstuma, que destrói os alicerces do modelo sacrificial que sustenta a tragédia shakespeariana. A canção executa um movimento duplo e sofisticado: ao mesmo tempo em que reconstitui sonoramente toda a trajetória emocional da narrativa original — da esperança amorosa ao desenlace fatal —, também desconstrói radicalmente sua dimensão ética e social, substituindo a lógica do martírio redentor pela força corrosiva da acusação sem perdão.
Se for para morrer, que a gente não morra ajudando.
Tangencialmente relevante pra essa deliciosa discussão, tem o detalhe bacana de que Exit Music for a Film meio que é um plágio do Prelude, Op. 28, No. 4 do Chopin. Muita gente já tinha descrito esse prelúdio como sufocante, etc (o artigo da wikipedia a respeito do prelúdio é bem interessante), então boa parte do poder está na harmonia, e não apenas na letra. Mas, o mais interessante é que o que você identificou aí como terceiro ato é 100% radiohead, não tem equivalente no prelúdio original, que pára no que você chamou de segundo ato, "morre" devagar e sem resistência.
Esse coda de resistência e revolta do Radiohead (o terceiro ato) acaba então sendo uma reconfiguração não só do Hamlet, mas do Chopin.
Em outra digressão tangencial, me lembrou o fim do filme "O Processo", do Orson Welles. No livro o personagem K. é executado no final sem oferecer qualquer resistência. Na filme, porém, K. resiste e desafia os executores, ainda que em vão. Quando perguntaram pra Welles o porque da mudança, ele disse algo como "depois do Holocausto, eu não consigo tolerar a ideia de K., que obviamente é judeu, morrer sem resistir". Chilling stuff.
Por fim, por fim, tem uma outra música que plagia o mesmo prelúdio: Insensatez, do Tom Jobim. Absolutamente irrelevante pra discussão, mas já que você claramente é obcecada por essa pequena jóia do Radiohead, vale ouvir um mashup: https://www.youtube.com/watch?v=screB680HqY
Obrigado pelo ensaio. Me levou pra longe, me fez esquecer meu trabalho corporativo por um instantinho.
adorei. música boa sempre tem disso de estar ali sempre cheia de sentidos aguardado para serem descobertos. idioteque, do radiohead, tem algo muito forte de traduzir pra mim, desde adolescente, um sentimento que só consigo elaborar agora (e ainda pior que eles), muitos anos depois.