Força de vontade é um recurso finito: não desperdice a sua tentando sair do Twitter por uma questão de princípios. Espere que mais esta rede social complete seu ciclo de degradação, transformando-se em um fantasma de si mesma. Aconteceu com o Tumblr, com o Flickr e com Facebook — só pra citar três elefantes brancos que continuam respirando em algum canto escuro da internet1.
A aquisição do Twitter por Elon Musk deve radicalizar o penoso processo de descaracterização da plataforma, em curso desde 20162. Isso representa uma perda relevante porque o Twitter ainda é uma faísca de vida da única internet que realmente interessa: a internet dos blogs. A internet ARTE que operou entre 1999 e 2013, e que tinha como espinha dorsal o feed RSS. Ela nasceu quando a Netscape inventou essa maravilha e morreu quando a odiosa Google sufocou sua derradeira obra de arte — o Google Reader.
O RSS é um desses protocolos simples e geniais, tão abundantes na era da internet utópica. A ideia é permitir que o usuário reúna todos os sites que lhe interessam em um único lugar. Funciona como uma espécie de caixa de e-mails que você abre e — tcharan! — visualiza todas as atualizações dos sites que você escolheu. Que você selecionou. Organizadas de forma cronológica ou segmentadas em pastas temáticas que você mesmo definiu. Sem hierarquização feita por algoritmos, sem enfiar coisa que você não assinou no meio, sem pegadinha do mallandro.
Em uma época anterior ao conceito de notificação, o atrativo do RSS era saber quando seus sites favoritos postavam algo novo sem ter de abrir uma aba do navegador, digitar http://www e ficar apertando F5, tal como faziam os incas, maias e astecas.
Usar um agregador de RSS te tornava o leitor mais atualizado do rolê — e também o mais voraz, já que assim ficava fácil acompanhar uma grande quantidade de sites e selecionar o que queria ler de cada um deles. Fácil buscar, organizar, salvar, guardar pra depois, excluir, adicionar, enviar aos amigos. Você não precisava de um algoritmo selecionando as coisas “por você” se estava tudo ali, tão fácil de fazer você mesmo, do seu jeito. Do único jeito certo.
O agregador de RSS gerou o ambiente propício à criação & consumo de todo tipo de conteúdo, inclusive dos mais esquisitos e menos comerciais. Esse novo modo de espalhar e de receber textos criou um novo comportamento de leitura, e novos escritores e leitores se formaram no caldo nutritivo do RSS.
Ler tinha se tornado mais fácil, e o mesmo valia para ser lido. O autor só precisava chamar a atenção do leitor uma única vez. Uma única vez e aquele leitor seria seu para todo o sempre, ou pelo menos até que ele voluntariamente te excluísse de sua lista. Isso é bem diferente do simba safári das redes sociais, onde todo “produtor de conteúdo”3 é um attention whore caçando na unha migalhas de atenção de seus próprios seguidores.
Deus criou o RSS sem nenhum defeito. Mas foi entre 2005 e 2007 que a Google quebrou a banca, elevando essa tecnologia ao status de ARTE. O Google Reader era ARTE. Com ele surgiu a possibilidade de seguir o agregador de feed de outras pessoas e ver o que elas haviam lido e recomendado.
Pense em um tópico pelo qual você se interessa, porém não o bastante pra ficar seguindo 72 sites em 3 línguas até escavar o crème de la crème daquela rebimboca da parafuseta específica. Com o Google Reader, bastava encontrar um nerd daquele nicho que tivesse um gosto parecido com o seu e seguir esse cara. Agora você podia ungir seus próprios curadores de conteúdo, fazer uma pipoca e ler apenas o que eles haviam pré-selecionado pra você. O que mais o ser humano poderia querer?
Uma característica decisiva da internet ARTE é que ela oferecia modos saudáveis e socialmente úteis de exercer o pecado da vanitas. Era delicioso ficar conhecido por escrever bem, por ler em quantidade, por ter boas referências. E quando digo “conhecido” eu quero dizer conhecido por um número bem modesto de pessoas. Gosto de pensar que o meu blog — o Já Matei Por Menos, lançado em 2004 — estava entre os mais lidos da categoria blog pessoal freestyle de raiz, e eu nunca superei o marco dos 2 mil acessos diários. Para que mais? Eram duas mil pessoas lendo e interagindo com os meus textos de maneira regular através dos anos. Era um luxo absoluto.
Escrever nos maiores jornais e revistas do país não me rendeu esse luxo. Ter um fanzine, uma coluna de rádio, redes sociais com dezenas de milhares de seguidores, uma newsletter com seis mil inscritos: nada disso somado me rendeu algo comparável ao nível de leitura, feedback e diálogo de ter um blog na era do RSS.
Tudo corria bem… Até que a Google quebrou as pernas do Reader para perseguir seus sonhos dantescos de dominação do mercado de redes sociais. Com isso, a humanidade meio que esqueceu a arte da fabricação do vidro, e o RSS tornou-se limitado a uma seita de nerds velhos vivendo em uma montanha. Hoje em dia, há várias opções de agregadores de RSS: Feedly, NewsBlur, Inoreader, The Old Reader, Feeder. Algum deles é quentinho e gostoso de usar? Nope. Vários deles começam a implementar inteligência artificial e seleção por algoritmos de jeitos pouco católicos? Yep. Mas, por enquanto, certamente são opções melhores do que dormir na chuva.
A ostracização do RSS é o grande drama da internet dos blogs. É este o grande velório que vale as nossas lágrimas. Mas derrotas há muitas, especialmente para nós.
Embora o RSS seja a chave explicativa do nascimento e morte da boa internet, as redes sociais foram um complemento simpático quando ele ainda estava em cena. E por muito tempo o Twitter foi a melhor de todas as redes.
As redes sociais cumpriam o papel de agregador meia sola para pessoas que não eram nativas o suficiente para usarem RSS, e ofereciam opções mais dinâmicas de interação para o resto de nós. Com o Google Reader fora de cena, elas sustentaram a distribuição dos blogs por um tempo, até começarem a adotar medidas progressivamente draconianas que hoje simplesmente impedem que qualquer conteúdo que não seja produzido sob medida para algoritmos tenha alguma visibilidade, quiçá uma visibilidade constante4.
A internet dos algoritmos define o que será produzido e consumido por todos os usuários, inclusive por quem nunca ganhou nem nunca ganhará um centavo com isso. Define tema, formato, linguagem, tempo, duração, volume, periodicidade Absolutamente tudo, e de modo cada vez mais detalhado. Mesmo os usuários menos escolados nos meandros dessa internet distópica sabem que postar no horário X é o mesmo que não postar, ou que selfies geram mais engajamento não apenas porque as pessoas gostam de selfies, mas porque o algoritmo gosta de selfies.
Esta é uma internet que castra qualquer conteúdo diversificado. Tudo está fadado a se tornar a mesma coisa. Pior do que se tornar: a já nascer a mesma coisa. As exceções são cada vez mais raras — e menos duradouras.
Para estar nesta internet é necessário fazer cada vez mais concessões e mais investimentos de tempo e dinheiro. É preciso mendigar que o leitor curta, assine, compartilhe, ative as notificações, comente, te dê uma procuração em três vias e transfira todos os bens para o seu nome.
Esta é uma internet na qual pessoas físicas produzem clickbaits…
Simplesmente não vale a pena escrever nesta internet. Os textos não chegam, ninguém lê, é uma experiência triste. E sabe o que é mais triste? As pessoas querem ler.
“As pessoas” é um termo forte, mas algumas pessoas querem. O brasileiro subverteu o Facebook, instituindo o gênero TEXTÃO DE FACE. Até o Instagram a gente está lotando de texto. Contra tudo e contra todos, a gente gosta sim de texto. E quem vem dessa subcultura muito específica da internet dos blogs é gente que quer ser lida. Eu sou essa pessoa. Eu comecei a escrever aos 14 anos pregando meus textos no banheiro da escola, de frente pro vaso sanitário. Porque eu queria ser lida.
Sinto que essa não é uma questão para boa parte dos escritores por aí. Dos professores, dos acadêmicos, dos jornalistas, e mesmo dos escritores de literatura. Sinto que pra eles não ser lido soa até vantajoso, porque o que eles querem é ocupar um certo lugar, circular por certos espaços, obter certo prestígio para o qual é necessário escrever, porém não é necessário ser lido. Fica até mais fácil conseguir essas coisas se ninguém te lê. Ninguém te lê, por isso mesmo todo mundo pressupõe que você é ótimo, afinal, está recebendo a chancela do veículo X, da editora Y, da universidade Z.
The only thing that matters is the writing itself: everything else is literature.
Except it's quite the opposite.
Para quem alimenta a vaidade trágica de ser lido, o Twitter ainda é uma chance mínima de espalhar palavras por aí. Por quanto tempo?
Esta foi a pergunta que me deixou um bocado pra baixo nos últimos dias.
Tem as newsletters, o Substack — ouço dizerem as vozes da minha cabeça.
Tudo tem e não tem.
Tem por um tempo. Tem de forma precária, trabalhosa, provisória e cada vez mais caralhosamente cara.
Ainda rendem dinheiro, é o que ouço dizer. Parece que andam inclusive cheias. Mas quem circula por essas bandas à noite prefere guardar o relógio no bolso.
Em 2016, o Twitter substituiu o antigo feed cronológico por uma “personalização” feita por algoritmos. Se antes os usuários recebiam apenas tuítes de contas que eles escolheram seguir, organizados de modo a exibir os conteúdos mais recentes primeiro, em 2016 eles passaram a receber aquilo que o algoritmo considerava mais “relevante” para eles, incluindo uma massa de tuítes e retuítes de contas que o usuário não seguia.
Que termo odioso, minha Santa Rita de Cássia.
A chave de tudo sempre foi a constância. Viralizar uma vez não tem nenhum valor, nenhuma graça. Ser lido por um número avassaladoramente abstrato de pessoas em uma única ocasião não incentiva ninguém a escrever, não melhora o texto de ninguém, não cria uma comunidade. A graça é ser lido por um grupo mais ou menos fixo de pessoas ao longo do tempo. Pra isso, o ônus da constância tem que ficar com as ferramentas de entrega desso conteúdo, não com as pessoas físicas que produzem esses conteúdos. Pessoas não devem ser ainda mais disciplinadas à constância. As ferramentas é que precisam dessa disciplina.
Que saudade do tempo de ligar o PC de mesa e abrir o Google Reader para ler só o que me interessava. E também de desligar o computador e deixar a internet ali, longe de mim.
Amava a era dos blogs, foi uma época importante pra eu desenvolver meus gostos e acompanhar gente legal, que fazia textos na base do artesanato, pra ser lido mas não pra ser influencer. Hoje em dia estou seguindo qualquer newsletter que der sopa por aí, na esperança de que um pouco dessas vibes voltem a circular na internet.